Por que o egoísmo, o orgulho e a arrogância de alguns faz com que não consigam enxergar o outro como um aliado e dar a quem precisa um "nascimento positivo"?
Por Carmen Padma Jinpa
Ouvi falar de gente que estuda tudo sobre trens ou que acorda bem antes do Sol nascer pra investigar com binóculos a vida dos passarinhos. Pois bem. Nós, corredores amadores, cultivamos a estranha diversão que é seguir as corridas de rua.
Alguém vai dizer que tudo isso é coisa de quem não tem umas roupinhas pra lavar – e eu não discordarei inteiramente. Mas me deixem explicar melhor. Suponha que você ama correr mas desistiu de entrar na rotina de treinos que o esporte exige. Você espera acontecer uma grande corrida de rua, de preferência uma maratona bem clássica. Você pega sua bicicleta e vai seguindo o trajeto dos atletas, admirando e torcendo e rindo do inusitado que é ver a paisagem usual do asfalto transfigurada por aquela onda de gente, os que correm e os que seguem.
A Maratona do Rio de Janeiro é perfeita pra curtir, porque percorre todo o trajeto da orla carioca e acontece sempre num fim de semana de julho, mês em que o calor nos dá uma trégua.
Recentemente, por causa dos ensinamentos do lama Padma Samten, algo além do lindo cenário da corrida chamou minha atenção. Às vezes, já mais pro final da prova, deparamos com mulheres e homens que mergulharam na exaustão. Ele seguem pálidos, trêmulos, com expressões de derrota ou de muita dor. Tem sempre aquele que desacelera e olha pros lados como se estivesse procurando a porta de saída de uma sala de torturas.
E é bem nessa hora que alguém na “plateia” começa a bater palmas e a gritar palavras de encorajamento. E logo tem um monte de gente aplaudindo e gritando: “Vam´bora, vam´bora, não desiste não!”. E sabe o que acontece? Aquele ser arrasado ressuscita bem na sua frente. O rosto brilha, o corpo retoma a postura, a paisagem muda e o sujeito volta a correr, se não com velocidade pelo menos com dignidade. E meia hora depois lá vai ele cruzando a linha, não importa a colocação, centésimo, penúltimo, último: ele foi até o fim.
Penso em tudo isso como aquele fenômeno que o lama Samten chama de “dar nascimento positivo”. Naquele momento, o corredor está se vendo como um infeliz frustrado, prestes a abandonar seu grande sonho. Mas nós não confirmamos esta visão; em vez disso, nós batemos palmas e lhe devolvemos um olhar positivo, um olhar que diz: “Veja, você treinou e chegou até aqui; você está cansado mas ainda tem alguma energia e é capaz de completar a prova; faça sua parte, apenas persista enquanto puder, estamos aqui com você, vá em frente”.
E é com este olhar que nós, uma empolgada tropa de desocupados, damos nascimento a um maratonista.
Qualquer esforço físico ou mental contínuo pode ser muito desmoralizante. Quem experimentou na vida os limites do cansaço vai me entender, e não tem nada a ver com ser atleta. Falo de varar as noites cuidando de um doente, superar as dores e angústias de um retiro intenso de meditação, entregar uma tese de mestrado no penúltimo dia do prazo, passar 12 intermináveis horas em trabalho de parto e por aí vai. O corpo desmorona; a mente experimenta oscilações perigosas de euforia e desespero e talvez os nossos seres queridos – logo eles! – desconfiem de nossa capacidade. Perdidos na confusão de samsara, eles podem até sabotar nosso esforço e nos trazer desânimo em vez de confiança.
Bem, eu desejo que nessas horas todos possamos encontrar alguém que nos dê nascimento positivo, alguém que nos olhe como o herói que nós estamos tentando ser. Mesmo que esse alguém seja um ilustre desconhecido, se me perdoarem o clichê. Ah, sim, e também aspiro a que possamos nós mesmos ofertar este olhar positivo, em todas as direções.
E para aqueles sortudos que encontraram um mestre compassivo e realizado como o nosso lama, bem, sabemos que fica um pouco mais fácil. Ele simplesmente não desiste de nós. Ponto final.
Texto extraído do site:
http://bodisatva.com.br/
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